Trilogia da diáspora
joao xavi · São João de Meriti (RJ) · 11/2/2008 08:59 · 171 votos · 7 ·
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.z´africa brasil.
Imagens
.o grupo.
.tem cor age - capa do disco.
.verdade e traumatismo - capa do disco.
.funk buia - em ação no show do rio.
.Pitchô, buia e gaspar - z´africa invadindo o rio.
“O esquema é contar a História dos que não têm História, aquela que ainda não foi contada nos livros, a que ninguém ensina na escola”.
Foi assim que Gaspar começou a desenrolar a idéia que trocamos durante a rápida passagem do Z´Africa Brasil pelo Rio de Janeiro.
O grupo de rap oriundo da Zona Sul de São Paulo deu início aos trabalhos em meados dos anos noventa e, desde então, vem explorando novas maneiras de atuar junto aos elementos clássicos da cultura hip-hop.
O registro das experiências vividas pelo Z´Africa durante esse período pode ser consultado através da discografia do grupo, composta por três discos que apelidei de trilogia da diáspora.
Dentre algumas possíveis apropriações, a palavra diáspora é utilizada para indicar grandes movimentos migratórios de populações e etnias.
Os títulos dos discos são exemplares pra introduzir um entendimento da lírica do grupo.
A trilogia é composta por dois álbuns: Antigamente quilombos, hoje periferia (2002), Tem cor age (2007), e o EP Verdade e traumatismo (2007).
Formado por negros e filhos de imigrantes nordestinos, o Z´Africa Brasil traz na sua própria composição a expressão de duas das mais importantes diásporas que contribuíram de maneira direta para formação do nosso país como é hoje.
Falando em formação, a escalação do grupo é a seguinte: na linha de frente atuam os MC´s Funk Buia, Pitchô e Gaspar, no fundão o DJ Tano segura as pontas nos toca-discos.
Ao vivo o Z´Africa se apresenta em dois diferentes formatos: o clássico MC + DJ, e a ousada formação adicionada da banda Z´Africanos, com músicos pilotando instrumentos como bateria, baixo, guitarra e percussão.
O resultado sonoro produzido pela união dessa rapaziada não deixa de ser rap, mas como bem explica Gaspar, o buraco musical do Z´Africa vai bem mais em baixo: “Nós estamos ligados na tradição do rap, na força do bumbo e caixa, essa é a base.
Mas o barato vai bem mais além, nosso som não tá preso ao esquema americano”.
Pra quem não sabe, a raiz mais profunda do rap está fincada na Jamaica, lugar onde se deu início a prática de improvisar rimas faladas em cima de batidas eletrônicas.
Foram DJ´s como Kool Herc que rumaram para os EUA levando na bagagem a cultura dos sound system, estabelecendo uma ponte entre os guetos de Brixton e do Bronx.
“A gente busca as referências na onda jamaicana, na raiz da raiz do hip-hop”, complementa Gaspar.Seguindo na contramão da liturgia pregada por boa parte da atual produção do rap, o Z´Africa carrega sua metralhadora vocal com temáticas que não abordam a situação periférica contemporânea apenas através da dinâmica violência e miséria.
A percepção desta situação é alimentada por interpretações históricas que nos proporcionam uma leitura ampla, apresentada faixa a faixa nos discos da chamada trilogia da diáspora.
Foi com Antigamente quilombos hoje periferia que tive contato pela primeira vez com o som do grupo. O título do disco é forte, coloca em pauta uma ponte histórica muito curiosa e corroborada por historiadores que relacionam, por exemplo, a abolição da escravatura com a formação das primeiras favelas.
A faixa homônima termina com a repetição do refrão que diz o seguinte:
“Antigamente quilombos hoje periferia
Levante as caravelas aqui não daremos tréguas nãoEntão que venha a guerra
Zulu, Z´Africa, Zumbi, aqui não daremos tréguas nãoEntão que venha a guerra”
O disco segue com Mano chega aí, a letra narra momentos de lazer que acontecem no cenário da periferia paulistana e explode com um refrão que questiona:
“Quem disse que na periferia não dá pra curtir?Mano chega aí!
Fique na paz, procure festa e faça por onde se divertir
Ai mano, vamo que vamo, diz, diz, diz...”
O disco funciona como um jogo de perguntas e respostas. Apresentando, por assim dizer, mais soluções do que problemas.
O que dá ao álbum um tom positivo, distante da recorrente sombra fatalista sob a qual quilombos e periferias são retratados em obras artísticas e científico-sociais.
Afinal de contas, a periferia tem seus problemas, mas por aqui também dá pra curtir.
A música que fecha o disco, Rei Zumbi, começa com uma série de cantos tribais seguidos da saudação
“Salve o Rei, salve o Rei Zumbi”.
A letra constrói uma narrativa do Quilombo de Palmares focada na imagem de Zumbi, que é retratado como uma figura mítica, salvador dos negros e responsável pela libertação dos escravos.
A música varia entre a narrativa histórica, que relaciona presente e passado ao som do rap, e um tipo de canto religioso como podemos ver nesses dois trechos da letra:
“História antiga refletida nos dias de hoje
Onde o negro pobre vive num constante açoite
Domina um leão por dia e por isso assim, grito pra todo mundo ouvir:
Salve o Rei Zumbi (...)
Zumbi voltará para nos salvar, ele vai voltar.
O Deus negro não pode estar morto, ele é eterno.
Rezaremos pela sua salvação, pela sua ressurreição.
Ele é eterno, e pro bem da nação o Rei de Palmares irá voltar”.
O grupo abriu o show aqui do Rio com os seguintes versos:
“Não tenha medo em dizer que tu é preto
Não tenha espanto em dizer que tu é branco
Não seja omisso em dizer que tu é índio
Nos toca-discos corre sangue nordestino
Brasileiros, nós todos somos brasileiros.
Sou latino-americano e brasileiro.”
De fato a questão étnica é o ponto fundamental da obra do Z´Africa Brasil, indo além da armadilha do chamado “racismo ao contrário”, o discurso não passa pela demonização de um e a vitmização de outro grupo étnico.
O trocadilho Tem cor age, que batiza o segundo álbum do grupo, enfatiza ainda mais a leitura que apresenta toda ordem de conflitos raciais que pontuam nossa história, mas a faixa de abertura, Raiz de glória, anuncia que estamos em “tempo de reparação” e aponta a visão do Z´Africa sobre a problemática:
“Parabenizo o bom convívio, elimino o risco Griot traz vitórias
Raiz de glória eu canto riso porque é preciso entrar na memória”
Essa é tal proposta de intervir na história. Se no primeiro disco eles cantaram a vida e morte de Zumbi, no segundo surge a figura de Gangazumba dando continuidade à presença de Palmares, que acaba sendo relacionada a uma série de referências que vão de Lampião, passando por Zapata e o MST.
Interessante é perceber que a referência histórica não se limita às narrativas de acontecimentos e a analises de contextos sócio-raciais.
As raízes da cultura brasileira também são evocadas para rechear o som do Z´Africa de um tempero muito típico, vindo, principalmente, do nordeste brasileiro:
“O que é da terra é de todos, o forró, o xaxado, de repente mistura o molho”,
como bem diz a letra de Zabumba de Gangazumba.
Gaspar explica: “Existem muitas linhas poéticas de canto falado na cultura popular brasileira. Nós estudamos essas diferentes métricas e acabamos usando isso no nosso som”.
Operação que, por fim, faz do Z´Africa Brasil um grupo de rap que além do discurso afiado produz uma música rica e global.
Vale a pena dar uma olhada atenta na faixa que dá título ao disco.
Tem cor age é uma convocação a tomada de atitudes.
Neste som a coragem é evocada em função de
“mudar o rumo da história, transformar cada dia em vitórias (...)
coragem pra pisar no verde e amarelo do genocídio.
Coragem pra trampar, coragem pra criar o filho (...)
coragem irmão, transmita seus pensamentos, interage Jão, transforme os acontecimentos”.
Todo esse papo explode no refrão que diz:
“O que importa é a cor, e quem tem cor age.
Tem corage de quebrar as algemas? Quero ver.
A humildade traz vantagem pra viver.
Na caminhada a fé vem fortalecer”.
A coragem do Z´Africa propõe um modelo de “atitude” que não envolve violência, armas, dinheiro ou ostentação.
É uma postura diferenciada do rap que ocupa espaço na mídia convencional, que abre novas possibilidades pra a cultura hip-hop.
Um verdadeiro pagode (não confundir com samba-rap, é pagode mesmo, partido-alto) homenageia o finado rapper Sabotage, assassinado quando vivia plena ascensão em sua carreira. Bom malandro traz melodia e joga ainda mais tempero no caldo sonoro do Z´Africa.
Em Quilombo invencível, a ponte histórica é utilizada mais uma vez para ligar a favela ao quilombo, os favelados aos quilombolas:
“Presídios não, preso por educação.
Escravo não, ai é invasão no casarão.
Quilombos não acabam, favela infinita.
Maloqueiro quilombola afastando a polícia (...)
Terra dos homens livres a margem do centro
Pra quem tá na guerra, tá sempre pronto pro arrebento
Sabedoria dos mais velhos vencendo as armadilhas
Energia das novas linhagens e as técnicas de guerrilhas”.
Mais uma referência histórica a processos de resistência popular traz à tona a figura de Lampião. Na música Rei do Cangaço, a exemplo da canção que conta a história de Zumbi, a figura do cangaceiro é retratada de forma mítica.
A letra canta um Lampião respeitado pelo povo e temido pelas elites, vangloriando sua coragem e enfatizando seu caráter marginal.
“Se é justo não temas No agreste toda caatinga é um veredas da sobrevivência
Má distribuição, fogo do norte é o fim do mundo
Revolução nordestina: Guararapes, Palmares, Canudos
A margem, o marginal julgado da sociedade
Do sertão aos centros urbanos cantando a liberdade”
A letra prossegue apresentando a transformação do pacato indivíduo Virgulino Ferreira em Lampião, assassino que amedontrava o sertão:
“Mataram sua família, desonraram seu nome
A partir daí lei não existia e nem ordens de homens
Que na ponta da caneta assinam mediocridades
Opiniões sem opinião, de quem, pra quê? Covardes!
Coronelistas miliciais, latifundiários feudais
Homens cegos pelo poder, escravistas toscos, boçais
Para ele não existia autoridades
Colarinhos branco, políticos temiam suas atrocidades (...)
De vendedor artesão a fora da lei
Lampião, versador inimigo do cangaço Rei
Assasino ou herói? Malandro ou homem santo?
Para a elite as faces de Lampião encarnava o demônio”
O personagem histórico é apresentado de forma dúbia: como ameaça a ordem, e libertador do povo nordestino. Caracterizado como:
“Revolucionário, imponente, guerreiro, resistente”
que se curvou somente a Padre Cícero e acabou morto, traído por um de seus cabras.
Marcha suicida, música que abre o EP Verdade e traumatismo, segue a ligação com o Nordeste. A música é um repente cantado por Sebastião Marinho, no toque da viola a letra fala sobre como a ambição vem destruindo os homens e a natureza. Introdução ideal para um disco levemente mais sombrio que os dois anteriores, e que foi produzido em condições pra lá de especiais.
O EP surgiu de maneira inusitada, eles me contaram a história, que é mais ou menos assim: em turnê pela Europa, o Z´Africa Brasil acabou encontrando o pessoal do grupo de rap francês Assassin, um dos mais representativos daquele país.
Os dois grupos já haviam produzido músicas juntos, quando os franceses estiveram no Brasil. Logo, o convite para produzir alguns sons aconteceu de forma natural.
Os paulistanos chegaram em Paris com apenas duas letras previamente rascunhadas.
As outras sete foram compostas durantes as gravações do disco, que duraram apenas três dias. Um verdadeiro recorde!
Além da velocidade, a qualidade das produções, a parte musical, e as letras impressionam.
É o registro de um Z´Africa Brasil amadurecido e o capítulo final ideal para fechar esta trilogia.
O conteúdo do EP é denso. Hiphopologia alfineta uma certa escola do rap dizendo que
“falta originalidade, o povo quer ouvir a verdade”.
Daí em diante a letra apresenta a proposta do Z´Africa, e a diferencia da linhagem do rap que reproduz um discurso batido e ultrapassado.
“É lógico, a nova era: hip-hop ruaInformação, cultura.
Educação é a lutaEscuta em manifesto odom do verso fusão
Auto-valorização, do caos nasce a transformação (...)
Na periferia: origem, costume e resistência
No dia-a-dia: orgulho, coragem e paciência(..)
O sentido é único, comunicação ao público
Meus erros eu assumoEu não aturo abusos de intrusos
Evite a comparação com bico sujo
Firme e forte, eu pego meu rumo(...)
Aliás, quem muito fala não faz
Boca de alarme é grilado porque tem prosa demais”
E fecha a música com um refrão que serve de alerta a quem cultua a violência através do rap:
“Na rua está a revolução, escolha o lado certo:
Quem faz caveira o seu destino é o cemitério
Eu falo sérioHiphopologia é o privilégio
Moral, caráter na humildade é meu critério
Quem faz caveira, seu destino é o cemitério”.
A luta retoma a questão racial abordando a colaboração dos negros para a formação do Brasil, e a maneira como a História retrata esse processo:
“A luta faz parte da nossa cultura
Nóis assegura a arte das ruas
O que seria de tudo isso aqui se não fosse o negro para construir?
Poder é povo, quem veta a verdade tem medo de quê?
Esconde o ouro, manipula o pensamento esconde o saber”
Na seqüência, Reparação surge como uma resposta para as questões colocadas na faixa anterior. O favelado encarna o guerreiro quilombola, que luta através de um entendimento do passado para transformar a situação contemporânea.
Curioso é perceber que apesar do conflito não se fala em armas, mas em conhecimento. Não se fala em destruição, mas em reestruturação.
“Guerreiro milenar, é época das colheitas
Lutar Art da vida rap representa reparação
Combatendo a pobrezaTranscendendo as riquezas (...)
Reparação dos erros do passado que estão presentes
Cultivando a tradição que é da nossa gente
Da riqueza dos povos, registrando as memórias
Escambo periférico a base da troca
O rap orienta, o hip-hop educa
Conhecimento abre a cuca, a origem é a busca
Terra dos homens livres, guerreiros da verdade
Reestruturação cultural reconstruindo Palmares(...)
Favela Quilombolizada, lutando por cotasPra que provas?
Sou um Quilombola a própria prova
Sabemos o que foi plantado e qual é o chão
É época das colheitas irmão: reparação!”
Esta letra poderia facilmente ser utilizada em campanhas a favor das cotas raciais em universidades públicas.
Funk Buia fecha a música pedindo uma reparação que venha do coração, de uma reflexão interna, para que daí então cada um de nós possa reconhecer o mundo que vivemos.
A dificuldade do brasileiro em encarar e resolver seus problemas históricos é o tema de Verdade e traumatismo.
Neste som, assim como em Planeta Terra é meu país, podemos ouvir Buia e Gaspar dividir os vocais com Rockin' Squat e Pyroman, MC´s do Assassin.
Os franceses mesclam a língua pátria com português para criar uma nova ponte que pede o fim da violência contra o gueto, seja ele em São Paulo ou Paris.
Depois da audição dos três discos e de assistir ao Z´Africa Brasil ao vivo fica a impressão que temos aqui um material riquíssimo.
Uma música que informa e comove, que diverte e sensibiliza.
Um material que deveria ser explorado além das fronteiras da música rap e da cultura hip-hop. Se tivesse tais poderes, além da competência que me cabe como historiador, recomendaria essa trilogia para o estudo de História do Brasil e da África.
Principalmente o segundo tema, que foi recentemente colocado como obrigatório nos programas das escolas públicas, mas que não é trabalhado devido ao despreparo dos professores.Em tempos de intensos debates sobre o ensino da História aplicado nas escolas públicas, a discussão é inflamada por um suposto conteúdo esquerdista presente em livros didáticos.
Acredito que devemos nos voltar para uma renovação do conteúdo que trata da nossa formação cultural, a formação como povo, como Nação e, por fim, como Estado.
Depois de ouvir tanta poesia não me resta inspiração pra fechar o texto de uma forma menos clichê, dizendo que é fundamental encarar a verdade do passado para resolver o traumatismo do presente. E aí sim, projetar um futuro cheio de batucadas e cantos que versem o que somos, sem medo de ser feliz.Assista também ao clipe de Eu não vi nada.
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